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Enquanto não atravessarmos a dor de nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um.” (Fernando Pessoa)

sábado, 21 de abril de 2012

Pobre amor. Onde está você?


“o amor é fruto da conspiração da Pobreza de ter um filho com Recurso, filho de Prudência.”
“Esse filho vive num extremo. Será para sempre pobre em homenagem a mãe. Mas puxou o pai, e, portanto, sabe o que é belo e bom. Está sempre à procura disso, mas nunca consegue.”


Caso do professor que matou a aluna em Brasília.
Reflexões de Michael Foucalt sobre o surgimento da Criminologia e da personalidade voltada ao crime (art. 59 do CP)

O caso do professor Rendrik, que matou a aluna em Brasília, depois que discordou do fim do relacionamento, causou enorme repercussão popular. Tanto interesse do povo poderia ser justificado por motivos nobres: solidariedade em relação à família da vítima ou sede de justiça em relação ao criminoso. Mas para a psicologia, o interesse do povo, em relação às notícias sobre crimes, está em ver a punição por crimes que desejamos ou aceitamos cometer um dia. Ao ver um programa policial, haveria, segundo Freud “[...] uma compensação às restituições que alguém coloca ao próprio sadismo” ”.
Em Totem e tabu, Freud afirmou que a tentação de repetir o ato do transgressor exigia o isolamento e a quarentena de quem violava um tabu. Desse modo, toda reação punitiva tinha como pressuposto, entre os membros do grupo, impulsos idênticos aos proibidos. Para Mead, sob o enfoque da psicologia social, mas chegando aos mesmos resultados de Freud, a hostilidade em relação aos criminosos contribui para aumentar a solidariedade e o amor dos cidadãos não deliquentes. Isso implicaria um reforço coletivo da moralidade. No entanto, por trás desse fundamento racional do castigo, há sua verdadeira função: “a gratificação pelas agressões desejadas, porém reprimidas”.
O “caso do professor Rendrik” parece contrariar essa tese. A maioria do povo não admite sequer matar alguém, quem dirá atirar três vezes contra sua “alma gêmea”. Além disso, todos buscam distanciar-se do assassino, seja por sua visão equivocada do amor como “posse”, seja por seu aparente perfil “psicopata”.

O curioso é que, para os maiores filósofos da humanidade, o amor depende da posse ou está relacionado ao que sentimos quando nos apoderamos de algo. Schopenhauer é explícito ao relacionar amor com posse. Para esse filósofo, o amor é uma ilusão subjetiva, um estratagema para que a natureza consiga atingir seu fim: a multiplicação da espécie. Isso se confirmaria pelo fato de que o apaixonado não deseja simplesmente a correspondência amorosa: “[...]mas a posse, isto é, o gozo físico”. A busca inconsciente dos enamorados pela procriação também se confirmaria pelo fato de os homens gostarem de mulheres com seios grandes (mais leite para as crias) e também pela atração entre os opostos (maior mistura de material genético, criando espécies mais fortes).
Para Sócrates, o amor também está relacionado à posse. Na obra o banquete de Platão, sete amigos tentam descrever o amor. De ressaca por uma noitada anterior, resolvem beber apenas o suficiente para explicarem qual o melhor conceito sobre o “amor”. Não importa descrever a versão de cada um. Até porque Platão considera sofismas as seis primeiras análises. Endeusam o sentimento “amor”, mas não o explicam. Só havia um filósofo no recinto, aquele que estava realmente à procura da verdade. Era Sócrates. Ele teria ouvido a verdade sobre o amor de uma mulher de Mantinéia, Diotima. Para ela, o amor é fruto da conspiração da Pobreza de ter um filho com Recurso, filho de Prudência. Depois de um banquete em homenagem ao nascimento de Afrodite, banqueteavam-se os Deuses. Recurso exagerou na dose e acabou cochilando no Jardim. A pobreza aproveitou-se da situação e teve um filho com Recurso, o Amor. Esse filho vive num extremo. Será para sempre pobre em homenagem a mãe. Mas puxou o pai, e, portanto, sabe o que é belo e bom. Está sempre à procura disso, mas nunca consegue. Daí por que o amor é necessidade, é desejo. Isso só existe, segundo Sócrates, quando não temos. Afinal, somente se deseja: “[...]o que não está à mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele próprio e o de que é carente”.
Por isso Romeu e Julieta se amam, porque nunca podem ter um ao outro. O obstáculo é a rixa entre as famílias. Em Tristão e Isolda, o cavaleiro chega a morrer de amor ao acreditar na impossibilidade de ter a Princesa em seus braços. Aqui o empecilho que sustenta o amor entre os pombinhos é a diferença entre classes sociais. Daí por que consideram o amor platônico um sofrimento, o eterno desejo por aquilo que não se tem.
O que importa considerar é que Sócrates não diferencia, em essência, o amor entre seres humanos do amor pelas coisas. Daí aproximar o sentimento de amor ao de posse, à necessidade de ter. Nesse sentido, é amor tanto o desejo de um jovem por uma Ferrari quanto pela mulher que o despreza. Nos dois casos há desejo pelo que não se tem. O afeto até seria maior pela Ferrari.  Afinal, quanto maior é a impossibilidade de ter, maior o desejo. No segundo caso, pelo menos já se tem a amizade da garota, falta uma dose de coragem e competência para usar as palavras certas para acertar o coração da donzela. Da Ferrari, tem-se somente um pôster. O que faz Sócrates é apenas graduar em termos de qualidade o amor. Seria próprio dos jovens, segundo ele, o desejo por coisas/corpos bonitos, enquanto os mais velhos teriam interesse em almas belas. No entanto, em ambos os casos, há necessidade de ter, e, portanto, amor.
O tratamento do amor desvinculado da posse é atribuído sem razão ao gênio de Aristóteles. Isso porque, na Ética eudemeia, o autor afirma que amar é regozijar-se. Nesse sentido, amar seria simplesmente alegrar-se com a existência do outro. André Comte, conferencista na Universidade de Paris, esclarece o equívoco. Segundo o autor, quando Aristóteles conceitua o amor dessa forma emprega o termo grego phílis – que quer dizer amizade – e não eros – o amor erótico. O primeiro termo descreveria: “o amor entre os pais e os filhos, ou entre os filhos e os pais”. Seria o amor por aquele que não nos faz falta: “a quem com compartilho a sua vida, e ele(a), a minha”.  O termo philis também seria adequado para descrever o amor entre as pessoas casadas, aos companheiros. Já que, segundo André, o amor erótico não sobreviveria ao casamento. Não obstante, o que importa é que Aristóteles não divergia de Sócrates quanto ao conceito de amor erótico e sua vinculação irremediável à idéia de posse.
Ainda segundo a concepção socrática de amor, é preciso distinguir o distanciamento voluntário e involuntário entre o sujeito e o objeto de desejo. Só assim se desmistifica o fato de matar por amor. O amor-erótico está sempre entre os extremos, entre a ignorância do outro ao seu conhecimento total. Aquele que não conhece não pode amar, tampouco aquele que compreende integralmente o outro. É preciso criar fantasia sobre o ser amado, daí a figura do príncipe encantado. Quando ele morre, acaba o amor. A canção de Claude Nougaro (Onde fica o Sena?) ilustra bem isso. Segundo ele: “[...]só que existe o tempo/ e o momento fatal/ em que o marido malvado/ mata o príncipe encantado”. Para que permaneça o amor, deve haver sempre a vontade, o desejo de possuir, de conhecer o objeto do desejo. Portanto, a distância entre o apaixonado e o objeto do desejo deve sempre existir. Mas a aproximação deve sempre ser buscada, ainda que isso diminua o amor. Quem aumenta a distância voluntariamente até aumenta o amor, mas não age em razão dele.
Outros são os motivos de quem mata supostamente por amor. Pode ser o egoísmo de não querer o objeto do desejo com outra pessoa ou até mesmo a ânsia de acabar com o sofrimento gerado pelo amor platônico. O prazer gerado pelo sexo, o total abandono do “eu”, implica o desejo da eterna repetição desse estado livre de preocupação. Daí a dependência pelo corpo, pelo físico. A consciência dessa perturbação, de que pode perder o objeto de desejo por investidas de terceiros, chama-se ciúme. Segundo Krishnamurti, nele existe sofrimento, ódio e violência. Além disso, a necessidade de repetir experiências com o objeto do desejo, e a consciência dessa impossibilidade – como um “pé na bunda” bem dado –, gera o sofrimento do amor platônico. Daí o alívio sentido pelos assassinos apaixonados quando extinguem o objeto de desejo.
A intensidade com que esses sentimentos vis se manifestam nos autores de crimes bárbaros sugere a tese de que, nesses casos, haveria um desvio comportamental no agente, uma tendência inata para cometer crimes, um psicopata. A professora Ana Beatriz, Psiquiatra e a autora do best seller “mentes perigosas: o psicopata mora ao lado” defende a existência de indivíduos com personalidade voltada ao crime. Segundo ela, a psicopatia não é uma doença mental. O ato criminoso praticado por esses indivíduos desviados é fruto de : “[...]um raciocínio frio e calculista combinado com uma total incapacidade de tratar as outras pessoas como seres humanos pensantes e com sentimentos”. Elenca diversas características comum aos psicopatas. Segundo a autora, o indivíduo com personalidade desviada, um criminoso em potencial, é espirituoso e divertido, não se constrange quando desmascarado com suas mentiras, tem uma visão narcisista e supervalorizada de seus valores e sua importância, além de outras dez características.
Para Michel Foucalt, o conceito de psicopata é falso e criado para atender os interesses da burguesia. Para o autor, o conceito de psicopata implica dobrar o delito com a criminalidade. Com isso o exame psiquiátrico busca: “[...]  toda uma série de outras coisas que não são o delito mesmo, mas uma série de comportamentos, de maneiras de ser que, bem entendido, no discurso do psiquiatra, são apreendidas como a causa, a origem, a motivação, o ponto de partida do delito”. A busca pelas causas do delito não fazia sentido até o fim do período monárquico. Nessa época, qualquer crime, por menor que fosse, representava uma insurreição contra o soberano. Daí afirmar Foucaut que, no período monárquico: “[...]não há mecânica do crime que seria da alçada de um saber possível; não há mais que uma estratégia de poder, que exibe sua força em torno e a propósito do crime”. Prova disso é que a criminologia surgiu apenas entre o fim do século XIX e começo do século XX.
 Para Foucalt, a burguesia não apenas ascendeu ao poder. Mas inaugurou uma nova forma de exercê-lo. Segundo ele, essa nova arqueologia permitiu a um só tempo: “[...]majorar os efeitos do poder, diminuir o custo do exercício do poder e integrar o exercício do poder aos mecanismos de produção”. Tudo isso sob uma aparente racionalidade das instituições.  O ideal de que a pena deveria corresponder aos danos causados à sociedade permitia economizar despesas com a punição. O atestado de psicopatia permitia aumentar os efeitos do poder, pois se punia o criminoso por atos cometidos bem antes do crime e sem qualquer relação aparente com ele, em clara ofensa ao princípio da legalidade. Afinal, como alerta Foucalt, lei nenhuma proibia ser o indivíduo imoral ou amar mais a si que aos outros. O conceito de psicopata seria uma técnica de normalização, a imposição de um padrão ético de conduta. A psiquiatria estava avançada, nessa época, e se sabia que os laudos psiquiátricos indicando uma personalidade voltada ao crime eram fajutos, risíveis, grotescos. Foucalt demonstra casos em que a psicopatia era afirmada a partir do gosto do criminoso por jogos e automóveis. Não é coincidência que o homem normal seja conveniente ao burguês. Ele se casa antes dos trinta anos, tem filhos, constitui família e é feliz como empregado.
Como foi possível que a psicopatia se infiltrasse no Judiciário, já que esse conceito atenta contra o princípio da legalidade, outro ideal burguês? A idéia de colocar um psiquiatra para constatar a psicopatia dava autoridade ao laudo, pouco importando o grau de certeza científica da afirmação. Por outro lado, o ideal burguês do princípio da persuasão racional das decisões judiciais permitia que os juízes desprezassem o laudo, decidindo a normalidade do réu a partir de sua convicção pessoal. Na verdade, sempre homologavam o parecer técnico do Psiquiatra. No entanto, o sistema permitia a inserção de um médico que seria ao mesmo tempo, nas palavras de Foucalt, médico-juiz, sem tirar o poder do Juiz de Direito. A afronta à legalidade, ao punir o criminoso por atos anteriores ao delito, estava justificada pela aparente racionalidade do laudo médico, proveniente de um saber relacionado às ciências naturais.
Atualmente, o conceito de psicopata ganhou autonomia jurídica. Com isso, o médico-juiz sai de cena e o juiz de direito passa a determinar por si só quem é psicopata. No Código Penal (art. 59), o juiz deve determinar a pena-base para o delito, devendo considerar para efeito de cálculo a personalidade voltada ao crime, o que é sinônimo de psicopatia.
Por outro lado,  os psiquiatras passam a utilizar o termo psicopatia no próprio consultório. Angariam novos clientes. Antes, apenas os loucos, agora também os anormais.
O padrão ético burguês, escondido sob o conceito de psicopatia, demonstra como funciona a arquitetura do Poder na atualidade. Não há dominantes e dominados. O Poder não é exercido ao toque de caixa, empurrado guela abaixo. Aumenta-se o Poder pela repartição do próprio Poder. A Ciência fica a serviço da ideologia reinante. Esse é um dos artifícios utilizados pela arqueologia do Poder burguês para aumento e manutenção da dominação. Preço: aumento do Poder para os cientistas. Desse modo, a Psicopatia é alçada à categoria de norma para o Judiciário e doença para a Medicina.
Aproximar o criminoso da população por meio da negação da idéia de amor-erótico desvinculado da posse e da psicose não implica considerar todos criminosos potenciais. Segundo Freud, o interesse do povo pelas notícias sobre crimes se justifica a partir da identificação entre os instintos do criminoso e os do resto da massa. A moral não destrói esses instintos, que ficam presos no inconsciente, como afirmado. No entanto, isso não impede que a internalização da moral religiosa ou de outros subsistemas sociais signifique para o indivíduo a disposição eterna de não cometer crimes ou determinado tipo de crime. O que não se pode é etiquetá-lo como impotente para a prática de crimes. Isso seria utilizar o conceito de psicopata ao reverso, pois teríamos que avaliar o sujeito a partir de suas ações bondosas, pois sua mente é impenetrável.


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http://jus.com.br/revista/texto/21539/caso-do-professor-que-matou-a-aluna-em-brasilia#ixzz1sd9OMcGL


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